Animais peçonhentos

Cristiane Lemos
3 min readMay 24, 2024

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A grande virada ocorreu em 2083. Pós-modernidade, amores líquidos e mudanças climáticas, já eram há décadas temas de debates, dos botequins e academia. Mas no fim das contas, poucas pessoas pareciam levar realmente a sério e fazer ações para tentar reverter o que estava por vir. Tanto foi deixado por fazer, que enfim, a previsão se tornou realidade.

Já havíamos passado por mais duas pandemias, em um curto espaço de tempo, após a primeira grande epidemia do século XXI, que havia sido a Covid19. Além delas, uma sucessão de enchentes, grandes capitais pelo mundo submersas, crise hídrica (água potável era cada vez mais rara e valia mais que ouro nos mercados clandestinos) além de tsunamis. Esses eram os principais fatores. E nenhuma arca de Noel seria capaz de nos salvar agora. Mesmo com religiosos ficando cada vez mais fanáticos e radicais, a medida que o medo tomava conta das pessoas. Quando a questão é sobrevivência, realmente somos capazes de tudo. E nenhum governante queria um povo ensandecido e fora de controle. Por isso, eram necessárias medidas rígidas para manter a ordem. O que significou uma diminuição cada vez maior de direitos e arbitrariedades, bem piores que algumas ditaduras já experimentadas por algumas nações. Até mesmo, essa noção de Nação foi desintegrando, formando grandes blocos de países aliados, com outros sendo anexados, invadidos e explorados. Como era de se esperar, após uma grande batalha travada por potências econômicas e armamentistas, a China conseguiu ter o domínio de nosso território, mesmo com a distância geográfica. Alguns grupos rebeldes tentaram resistir, infelizmente a Amazônia, já era há muito, mesmo antes desse colapso global, terra repartida entre muitas outras nações. O nosso país, cravou seu destino, há muito percebido por estudiosos do tema, uma grande fazenda global, com terras preservadas, com o único intuito de continuar alimentando povos privilegiados. Fome e desigualdade, tomaram proporções alarmantes.

De uma certa forma, tudo isso, já estava no inconsciente coletivo, quantas vezes, na época em que isso era possível, fomos ao cinema assistir filmes de ficção científica que retratavam com efeitos especiais cada vez mais realistas, nosso derradeiro fim. Porém, pelo menos eu, nunca havia visto ninguém cogitar a possibilidade do que ocorreu. Um grande vírus, criado em laboratório, foi utilizado como arma química, com o intuito de alertar a quem quisesse desafiar o conglomerado de nações que agora formavam a Grande América, como os Estados Unidos se autoproclamam, podia fazer com os seres humanos. O que ninguém imaginava é que seria de uma forma tão vil e covarde. Pois atingiu gatos e cachorros. Em apenas quatro anos, não havia mais nenhum deles na face da terra.

Um mundo sem pet, fez até mesmo pessoas que não eram muito afeitas aos bichanos, ficarem doentes mentalmente. E pensar que antes haviam discussões acirradas, entre pessoas que condenavam quem tratava seus animais de estimação, com carinho e respeito, dizendo que estavam humanizando as espécies, e que mais digno seria cuidar de crianças abandonadas. Por mais que fosse realmente uma questão problemática, transformar bichos em humanos peludos, como quando íamos ao shopping e tinha alguém passeando com um carrinho e ao invés de um bebê, havia ali um Lulu da Pomerânia, o mais assustador, sempre foram as pessoas que tratavam crianças como bichos, ou pior. Se é que cabe essa expressão. Pois afinal, não deviam todas as espécies que compartilham está vida terrena, serem igualmente respeitadas? Infelizmente, está era agora uma questão do passado. E cada ser humano, que se julgava tão superior e especial, sentia-se cada vez mais solitário, nesta bola azul, flutuando no espaço.

Clandestinamente, muitas pessoas começaram a cuidar de animais peçonhentos. Era evidente nossa necessidade extrema de dar e receber amor. Mas cobras, aranhas, escorpiões e lacraias, pouco se importavam com isso.

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