Cristiane Lemos
4 min readJun 4, 2024

Eu que não fumo, passei a colecionar isqueiros. Tudo começou de forma despretensiosa. Eu precisava de fogo, para acender os meus incensos pela casa e não queria ficar recorrendo ao fogão. Fui então em busca de uma caixa de fósforos, como não encontrei, só me restou aceitar a indicação da atendente.
Tem isqueiro, serve?
E eu, disse que servia. Mesmo sendo mais caro e ainda não fazendo ideia de como usa-lo.
A atendente pareceu satisfeita. E eu pensativa, sobre minha mania de sempre dizer sim. Um pânico inerente de acreditar que qualquer recusa poderia soar desagradável. E isso foi tudo que nunca quis ser. Mesmo percebendo cada vez mais o quanto isso custava minha sanidade.
Então, levei para casa, meu primeiro isqueiro Bic, escolhi o da cor lilás. No começo, não compreendi bem seu mecanismo. Depois foi se tornando um gesto cada vez mais automático.
O fogo surgindo tão espontaneamente, ignorando séculos e séculos, que nossos antepassados saudaram o Deus do Raio, que lançava suas faíscas pela Terra, até que enfim, eles pudessem dominar as chamas. O que diriam se me vissem acendendo e apagando despudoradamente o objeto em minhas mãos?
E assim comecei a comprar. Como um souvenir que encontramos em viagens e levamos para alguém querido, como uma forma de dizer que lembramos dele. Mas neste caso, eu era a pessoa que tentava lembrar a mim mesma sobre minha existência.
Esse meu eu, atraído pelo fogo, passava cada vez mais a trazer isqueiros para meu eu apagado. Como se no fim, eles pudessem se tornar pistas sólidas de nossa existência unificada e contraditória. Pois ao mesmo tempo, eu acendia e apagava.
Primeiro vieram os da mesma marca que o primeiro, só que com diferentes cores. Depois, fiquei fascinada pelos vintage. Os garimpando em feiras de antiguidade. Fiquei impressionada com os que possuíam diferentes formas, como um que por exemplo, tinha a aparência de um mini carro. E também passei dias sonhando com os sofisticados, distantes da minha realidade financeira. Até que por fim, me fixei nos personalizados.
Por toda parte, isqueiros com frases motivacionais, paisagens, memes, pinturas, trechos de poesia, eróticos e pasmem, até religiosos. Sendo que meus preferidos eram de artistas e escritores que haviam marcado minha vida.
Clarice, Frida, Pagu, Chico. Todos fumantes, como a me observar, incrédulos. Não haviam mais gavetas suficientes. Então, eles passaram a ficar expostos pela mesa, estante, rack, em cima da geladeira. De modo que as poucas pessoas que me visitavam, faziam sempre a mesma pergunta. A mais direta delas, foi de Rita, que de 15 em 15 dias chegava para dar uma faxina no meu apartamento.
Deu para fumar agora Dona Débora?
E em seguida, riu debochadamente.
E eu não sei por que, o desdém de Rita me doeu tanto.
Que mal haveria se eu começasse a fumar? Então uma mulher de 48 anos está fadada a eliminar seus maus hábitos e não criar novos vícios?
Neste mesmo dia, depois que Rita foi embora, desci até a banca de jornal e pedi um maço de cigarros. Achei meu gesto heroico e por um momento me senti novamente uma adolescente, por mais que me nervosismo denunciasse alguém prestes a perder a razão.
Já no meu apartamento, sentei confortavelmente em minha poltrona. Tentei dar um ar de seriedade, mas ria como uma louca. E tentava eu mesma silenciar minhas risadas, antes que Dona Helenita batesse na porta. Ela estava sempre disposta a invadir a privacidade dos vizinhos, a menor mudança brusca de rotina. E certamente minhas risadas histéricas chamariam sua atenção.
Após conseguir controlar minha respiração, coloquei o filtro amarelo do cigarro entre os lábios. Escolhi o isqueiro repleto de margaridas. E me sufoquei na minha primeira tragada.
Senti inveja de Carmem, e seu apartamento impregnado com o cheiro da nicotina. Sua habilidade em fazer a fumaça densa adentrar seus pulmões e sair pelas narinas como pássaros selvagens outrora engaiolados, era proporcional a sua liberdade e desprendimento com a vida.
E eu tentei ser tão correta, repetindo velhos padrões transmitidos como algo sagrado. De minha mãe para mim, de minha avó para minha mãe, de minha bisavó para minha avó. Assim sucessivamente, até a primeira ancestral que decidiu controlar seus desejos, silenciar seus sonhos, violentar suas virtudes, apagar o seu brilho, tudo em prol de um outro. Ou talvez, por pura sobrevivência.
Talvez, ela esperasse por tempos melhores, e futuras gerações de mulheres corajosas que não repetissem esse padrão imposto. Talvez, o que ela não esperasse é que milênios depois eu estivesse aqui, repetindo cada gesto, como uma receita de bolo e esperando por um final feliz que nunca chegava.
Há dez anos eu era uma mulher divorciada e meu único filho estava agora do outro lado do oceano. Vivendo cada dia novas aventuras na Inglaterra, onde permaneceria pelos próximos dois anos e de onde talvez nunca retornasse. A não ser para visitas cada vez mais esporádicas.
Virei uma garrafa inteira de vinho. Estranhamente eu sempre dominei mais o álcool que o fogo.
Imaginei uma neta que ainda não existia. Corajosa e livre. Crescendo bem longe de mim. Seria melhor, eu não tinha muito o que ensinar, a não ser sobre o que não deixar de fazer. E talvez, depois que eu morresse, ela viria com seu pai. Ele mostraria o local que viveu, contaria de alguns momentos felizes registrados na memória. E ela tentaria dar vida, a cada ambiente vazio e frio.
E em meio a lembranças distantes da realidade, encontraria minha coleção de isqueiros.
E imediatamente ela criaria em sua mente a imagem de uma avó tão descontraída a ponto de ter uma coleção. Tão interessante por gostar de algo tão inusitado. Tão revolucionária por não ligar para o que pensavam. Tão livre por acende-los mesmo que aparentemente em vão.
Chorei pensando nela.
Ah, se eu soubesse fumar...Acenderia um cigarro agora e a fumaça branca seria minha companhia para as horas silenciosas que seguiriam.