Jaziam ali

Cristiane Lemos
3 min readMay 23, 2024

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Éramos mais ou menos quinze alunos. Pessoas diferentes com um objetivo em comum. Todos ali, por alguma razão, estavam querendo aprender mais sobre a cidade de São Paulo. Talvez, o que mais tenha chamado atenção de todos na hora da matrícula, é que o curso não era em sala de aula, mas sim uma visitação a cada bairro estudado.

Como fiz a matrícula, após a formação da turma, perdi a primeira aula. Então o bairro da Sé que seria o primeiro, tornou-se o último que devo aprender mais sobre sua história, e em uma turma posterior que provavelmente irá se formar em agosto. Até lá, tem muito chão pela frente.

Porém, decidi registrar cada um desses dias de aula, com minhas impressões, mais abertas e sinceras do que as registradas no relatório e enviado para a professora.

Começando então pelo meu primeiro bairro visitado, Vila Madalena. Foi em uma manhã de sábado bem ensolarada. O ponto de encontro foi no metrô da Fradique Coutinho. Mais um local que leva o nome de um bandeirante. Por todos os lados de cada cidade do país, não tem como esconder ou fingir que nossa história não é um verdadeiro massacre. Exterminação de povos indígenas e uma horrenda escravização humana. Porém, dessas pessoas, pouco ficamos sabendo. São sempre apagadas da história. Já quem praticou esses atos, o nome, as esculturas, a história contada sob um ponto de vista bem hipócrita, está por todos os lados.

A aula a princípio estava programada para durar duas horas, de 9 h às 11 h, porém, já passava de 12h quando adentramos o cemitério São Paulo. Último ponto importante do bairro, a ser visitado naquele dia. Talvez pelo calor, bem atípico para terras paulistas que fazia naquela manhã, ou abatidos pela fome e sede ou pelos quilômetros já percorridos, a maioria não demonstrava nenhuma empolgação, com essa última visita, muitos demonstrando inclusive insatisfação e pouco afeitos a fascinação que a professora parecia possuir pelo local. Não somente pelas pessoas enterradas por lá, artistas, intelectuais, escritores, políticos, entre outros, mas como também pela arte tumular.

É certo que a morte não é tema que agrade a todos. Quanto mais percorrer ponta a ponta de um cemitério, que inclusive no mesmo horário que estávamos presentes, ocorria um sepultamento, sendo preciso a professora parar sua explanação sobre cada detalhe dos túmulos, para que o cortejo passasse velando o caixão, enquanto fazíamos cara de paisagem, outros tédio, outros tristeza, outros cansaço e outros vergonha. Eu senti uma mistura de todos esses sentimentos e vou aqui escrevendo deliberadamente, julgando pelo que captei de cada olhar, que esses sentimentos também estavam presentes em cada um dos alunos. Enquanto a constatação do nosso derradeiro fim passava bem perto de nós.

Bastou se afastarem um pouco, para o brilho nos olhos da professora voltar com tudo. Os alunos que estavam meio dispersos, voltaram a observar, enquanto ela informava que o último túmulo a ser visitado naquele dia, seria do Zé do Caixão. Muitos, inclusive eu, registravam fotos do local, como uma exposição em um museu, enquanto outros manifestavam verbalmente que aquilo era um absurdo. Ouvi, quando uma aluna disse que não gostaria de ter a foto de um tumulo na galeria do celular. E pensei se eu não estava exagerando e me deixando levar pela empolgação da professora. Talvez realmente fosse melhor apagar tudo. Afinal, eu não creio em bruxas, mas que elas existem, existem.

Deixei de lado esse pensamento, fotografando e tentando absorver cada detalhe que era transmitido. A morte é tão repudiada e retratada das piores formas possíveis em nossa cultura. Sempre como algo feio e doloroso. E talvez seja isso também mas não apenas isso. É parte de nossa vida. E ser enterrado não é um gesto simples. Traz uma dignidade tremenda. Um encerramento para nossa história na terra, uma das provas de nossa existência. E entre famosos e anônimos, todos os restos mortais que jaziam ali, tinham algo em comum. De alguma forma, sejam nascidos ou vindos de outros lugares, todos vivenciaram São Paulo. E isso me interessava muito mais do que velhas crendices.

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