Para meu ilustre vizinho Lima Barreto

Cristiane Lemos
3 min readJun 16, 2024

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Por vinte e dois anos morei em um bairro do subúrbio carioca, Todos os Santos. Localizado na Zona Norte da cidade. Acontece que no início do século XX, viveu por ali e andou pelas mesmas ruas, mesmo que os nomes tenham mudado, Lima Barreto.

Meu vizinho ilustre, que tanto sofreu. Sua mãe ficou doente e faleceu quando ele tinha apenas seis anos. Deixando mais alguns irmãos, o que para uma família pobre significa mais bocas para alimentar. Seu pai, enlouqueceu. E posteriormente ele também cederia a loucura e o alcoolismo. Mas nunca deixou de escrever e trabalhar (era funcionário público). Exceto nas vezes que precisou ser internado, até, por fim, ser considerado inapto a seguir adiante, e foi aposentado.

Mas ele continuou escrevendo e lendo. E morreu sozinho, entre os livros. A morte foi um pouco reflexo da vida.

Muitas vezes andando maltrapilho pelas ruas, cambaleando por aí, fedendo a álcool e por vezes por falta de banho.

Meu vizinho Lima, me ensina mesmo após um século, que escrever de fato salva. Na maioria das vezes não é um capricho ou uma vaidade estética, que a cada momento captura mais alunos em busca da escrita criativa e páginas e páginas de fotos instagramáveis.

Ah Lima, você quis tanto ser aceito, você lutou tanto por isso. E se revoltou, ficou indignando, ficou doente, ficou calado, ficou irado, ficou louco. Eu queria tanto que em algum momento você soubesse que nunca foi sobre você ou somente você. Mas um sistema que esmaga. Que destrói e que adoece. Esse mesmo sistema não se importa de verdade com quem vive ou quem morre, desde que no fim você não seja lúcido, não tenha autoconhecimento, nem sanidade, nem esperança, nem vontades, nem escolhas.

Li algumas de suas crônicas e percebi que no fim, nós suburbanos, compartilhamos muito de um destino em comum, através dos séculos, sobrevivendo nesta cidade que cresceu desordenada, e colapsando um pouco mais a cada ano. Longe das praias e perto das linhas de trem que repartem os bairros em dois. Longe dos whisky e perto da cachaça. Longe da glória e perto do fracasso. Longe da bossa e perto da fossa. Somos sobreviventes, resilientes. Sempre bem próximos de um colapso nervoso. E guardamos dentro de nós uma estranha esperança.

Lima, é comovente como você não deixou de escrever em nenhum momento. E talvez nem sequer pudesse. Não era uma aventura boba. Escrever era como reivindicar sua existência. Você que amava as cafeterias do Centro, onde fez alguns bons amigos, você que enviava seus textos para os jornais, que teve que batalhar para a publicação do seu livro, que escreveu até mesmo sobre seus dias mais sombrios no hospício, que não virou as costas para sua família, mesmo as custas de sua lucidez.

Meu querido e ilustre vizinho, Lima Barreto, eu te reverencio. Vou ler cada um dos seus livros, quero falar sobre você, quero escrever sobre você. E desejo que onde quer que esteja, descanse em paz.

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